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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Vendo as coisas pelos olhos dum pavão



Do correspondente de “Despertai!” na Índia

 
   TUDO começou quando furei a bicadas a casca do ovo e saltei para o domínio da vida como ave. Ali estava eu, pestanejando sob a luz tropical, atônito. Tudo era tão estranho, tudo era tão atemorizante. Instintivamente, eu conhecia minha mamãe. Aconcheguei-me a ela, sob a asa protetora dela. Ali estava seguro, era amado. Para mim, a mamãe me parecia tão forte, tão confiante, isso me fez sentir seguro.
Assim passei os primeiros dias de minha vida. Embora não compreendesse naquela época, era um pavãozinho, e tinha duas irmãzinhas e dois irmãozinhos. De modo que éramos uma família mediana de pavões, visto que há, em geral, de quatro a seis ovos no ninho da pavoa.
   E, falando de ninhos, notei que o ninho de onde provim era uma depressão escavada no solo, no meio de densa massa de vegetação rasteira localizada em aberta área rural selvagem. Estava forrado de raminhos, folhas e grama — muito confortável e bem escondido dos inimigos à espreita. Pela observação, mais tarde aprendi que a mamãe deve ter posto ali seus cinco ovos lustrosos, de cor creme pálida, cada um tendo cerca de seis centímetros de comprimento. Solicitamente, sentou sobre eles por vinte e oito dias até que eu surgi em cena.
   Compreendo que, durante minha incubação, ocorreu um incidente que talvez resultasse em eu não ser chocado de jeito nenhum. Nosso ninho se localizava perto de campos de painço e cevada, em crescimento, perto de pequeno tributário do Rio Jamuna. Próximo havia também um trecho de terreno não cultivado, cheio de pedras e coberto de capim selvagem e vegetação silvestre. Pontilhavam o terreno arbustos de mirta selvagem e acácias. A tarde já findava, à medida que o sol iniciara seu rápido ocaso. Tudo estava parado e muito quieto.
   Subitamente, um movimento furtivo nos arbustos silvestres fizeram com que mamãe desse sua plena atenção. Com olhos alertas, penetrando pela vegetação rasteira, ela viu um gato selvagem à espreita. Ela ficou congelada no ninho, por assim dizer, ao passo que a criatura de cara faminta se aproximava. A plumagem da mamãe se fundia com a vegetação de fundo; parecia invisível. O gato passou, correndo em direção aos campos de cereais. Caso mamãe tivesse sido vista, talvez bem que poderia ser o fim dela e o nosso, pois as pavoas recusam-se a abandonar o ninho até mesmo em face do mais grave perigo.

Costumes dos Pavões

   Nós, pavõezinhos, aprendemos depressa. Logo aprendemos que a mamãe não era a única consorte do papai. Havia cinco delas! Em resultado, um pavão talvez tenha até uns vinte e cinco filhotes por ano — questão normal quando vista pelos olhos do pavão.
   Nossa família pertence a um pequeno bando de pavões que vivem numa seção do deserto de Rajasthan, do norte da Índia, não muito distante de Jaipur. Tenho inúmeras tias e tios e, sendo gregários por natureza, gostamos de andar juntos. Não raro, várias famílias compartilham a mesma árvore qual poleiro. Entretanto, durante a época do acasalamento, todos os meus tios se desviam em busca de consortes para si mesmos.
   Os pavões estão bem despertos já nas primeiras luzes da aurora, mas, ao invés de voarmos para o solo de imediato, preferimos tomar tempo, descendo de galho em galho, acabando com o silêncio matutino com nossos altos pupilos que soam como “mei-ô”. Logo nos interessamos pelo nosso desjejum de cereais. Mamãe nos ensinou a procurar nossos requintes favoritos. Alimentamo-nos principalmente de grama e de cereais. Não raro passamos dias inteiros devastando os campos de cereais. Por causa de nossa condição “sagrada” aqui, contudo, os lavradores da aldeia suportam nossa devastação com firmeza estóica. Bifes de insetos suculentos e gordos também figuram em nosso cardápio, havendo aqui e acolá um tenro lagarto. Papai e mamãe até jantam cobrinhas! Provavelmente não é uma idéia apetitosa, se não vir as coisas pelos olhos do pavão.
   Quando termina o dia, em fins da tarde, jantamos cedo e então voltamos a nossos poleiros no processo inverso, subindo vagarosamente os “degraus” até que alcancemos um poleiro satisfatório. Temos reputação de brigar bastante e fazer muito barulho ao nos acomodarmos para passar a noite.


Os Pais Pavões Partilham as Responsabilidades

   Dentre meus genitores, papai era de longe a personalidade mais interessante. Mamãe, por outro lado, sabia como misturar as cores, também. Ela escolheu um vestido que se fundia com as cercanias ao passo que cuidava de seu ninho e seus ovos. Provavelmente se mantinha tão ocupada fazendo ninhos, pondo ovos, chocando-os e cuidando dos filhotes que achou que era imprática um bonito vestido de plumas. Papai, que não compartilhava os deveres de incubação, dispunha de mais tempo para trajar sua cauda linda de plumas e andar pavoneado.

 
   Todavia, devo admitir, papai era guia esperto de seu rebanho. Contrário à aparência, às vezes, sempre vigiava com diligência possíveis inimigos — gatos do mato, águias e homens. Seus olhos e ouvidos são tão fenomenalmente aguçados que é raro que os pavões sejam apanhados. Dentre toda a população do mato, papai usualmente é o primeiro a detectar a aproximação de um leopardo. Em tais épocas de perigo, nem sequer voamos, embora possamos voar rápido e por longas distâncias. Antes, preferimos correr rapidamente pelo solo.
   A menção de inimigos me faz lembrar de algo que sucedeu quando só tinha seis meses. Alguns de nós, pavõezinhos brincávamos na sombra. Um dos machinhos estava fazendo-se de ridículo, tentando fazer uma corte prematura. Esquilos rasteiros corriam em redor e a pequena distância um gaio solitário azul se empoleirava quietamente numa amargozeira. Numa figueira de bengala próxima, um grupo de acridóteros imitavam sons da selva. Alguns pavõezinhos lutavam por um lagarto que um deles capturara. Abruptamente, papai soltou um pupilo penetrante que deixou-nos todos parados. Perigo! Espalhamo-nos em todas as direções. Sem se saber de onde, surgiu uma águia, mas, graças ao cuidado atencioso do papai, não houve nenhum dano.

Plumagem do Pavão

   Nos primeiros meses, dificilmente me diferençava de minhas irmãs. Nossas plumas da cauda eram as mesmas. Com oito meses chegou o tempo, sob o sistema do pavão, de deixar meu lar e cuidar de mim mesmo. Isto dava a mamãe um descanso, antes de sua tarefa seguinte de criar uma família. Por volta dessa época, eu desenvolvia minhas características plumas da cauda que crescem por acima das reais plumas da cauda. É um processo vagaroso. Não foi senão em meu quarto ano de vida que podia esperar alcançar as plenas plumas dum macho.
   Gradualmente, ao se passarem os meses, adquiri um terno imaculado de penugens e plumas. Tornei-me adulto, pesando quase cinco quilos, e tinha quase dois metros e dez centímetros da cabeça à cauda. A cobertura de minha cauda superior apenas tinha um metro e meio de comprimento. Eu tinha amadurecido, e gozava a perspectiva de viver até a boa idade de doze anos. Podia olhar para a frente, então, para a mudança anual de veste, e talvez até mesmo a ser admirado pelas criaturas humanas que levassem câmaras em vez de espingardas.
   Quem dera que pudesse me dar uma boa olhadela! Começando com a minha cabeça, tenho uma crista de plúmulas eretas, com pequena mancha branca de cada lado. Meus olhos também estão postos em uma pequena mancha branca. Meu pescoço comprido está coberto de plumagem brilhante verde metálica e azul, dissolvendo-se em verde malhado sob minhas plumas das asas. Elas se tornam quase que pretas em meu estômago. Note que minhas asas, em contraste, são cinzas, pontilhadas de preto. Minhas reais plumas da cauda, que não pode ver, são de cor amarronada.
   As plumas superiores da minha cauda, não um metro e meio para trás, são verde e azul bronzeado. Estas plumas superiores da cauda desenvolvem membranas do tipo de ramagem miúda em que se notam os familiares “olhos” reluzentes ou ocelos. É só querer e eu consigo levantar verticalmente as mesmas por cima das minhas costas, como um leque, e posso mantê-las ali, apoiadas pelas reais plumas da cauda. Posso fazer uma exibição e tanto.

 
   Mas, esta exibição não visa primariamente o prazer dos admiradores humanos. É meu modo de conquistar consortes. Quando começa nosso período procriativo anual, eu procuro meus prospectivos consortes. Logo que acho um, exponho-lhe todos os meus encantos. Exibo uma espécie de dança diante dela. Com peito para fora e as plumas superiores da cauda bem elevadas, pavoneio-me de um lado para o outro, inclinado para a frente. Ao mesmo tempo, solto um pupilo duro e rouco, que para o leitor não é nada musical, mas que a deixa ficar sabendo que estou interessado nela. No clímax de minha exibição, vibro minhas plumas inferiores da cauda, que, por sua vez, dão às plumas da cauda uma aparência bruxuleante ao acompanhamento de um som farfalhante. E dá certo, pois na época do acasalamento, de janeiro a outubro, consigo usualmente conquistar quatro ou cinco fêmeas. Daí, sinto-me como o marajá cheio de jóias, passeando no meio de seu harém.
   Por certo, minha plumagem brilhante pode constituir também um perigo. Com todo este equipamento extra, como se pode fugir dos caçadores e dos comercialistas que estão dispostos a me comer ou roubar minhas plumas? Na verdade, há legislação que restringe a caça e a morte da minha espécie, mas sempre há aqueles dispostos a ignorar a lei. Pode imaginar quão difícil me é eu me manter afastado do dano?
Há uma coisa que posso fazer para reduzir o perigo. Cada ano, por trocar as plumas da cauda, posso deixar estas belas lembranças no chão para que os colecionadores as encontrem e as levem embora. Daí, também, apesar de meu empecilho de plumas, disponho da habilidade de deslizar silenciosamente pela mata espessa com a agilidade de uma cobra. Também, para muitas pessoas, sou objeto de reverência. Têm-me como espécie de ave “sagrada”. De modo que os caçadores de pavão não ousam levar a cabo seu trabalho nefasto muito às claras.

História dos Pavões

   Mas, minha estória não ficaria completa sem um pouco da história dos pavões. Suponho que já sabe que pertencemos à família de aves fasiânidas. Não obstante, temos tantos primos entre os faisões que os peritos nos classificaram sob o termo “Pavo cristatus”. Provável é que isto se deva à nossa crista nos diferençar de nossos primos distantes. Quando meus ancestrais saíram da arca de Noé, por fim se estabeleceram na Índia. Aqui, por milhares de anos, minha espécie tem servido de ave ornamental nas cortes reais e nas propriedades aristocráticas. Até mesmo no exterior, servem como embaixadores plumosos nos palácios estrangeiros.
   Foi um grande dia na história dos pavões quando alguns de meus distintos ancestrais desceram dos navios fenícios no solo egípcio e foram levados para a corte de Faraó, onde em plenos ornamentos pavonais, apresentaram suas plumosas “credenciais”. A história bíblica nos conta de os pavões constituírem algumas das valiosas importações feitas pelo Rei Salomão. Assim, há três mil anos, o esplendor do palácio real de Sião era destacado pelos pavões ornamentais vivos. (Bíblia em 1 Reis capítulo 10, versículos 22 e 23) Séculos depois, Alexandre da Macedônia levou para a Europa duzentos pavões.
   Em toda a nossa história, sempre tivemos dificuldades em entender as coisas do ponto de vista humano. Por exemplo, por milênios na Índia nós, os pavões, temos sido considerados aves sagradas e, às vezes temos sido até adorados. Figuramos em algumas de suas antigas lendas religiosas. Ainda hoje, em partes da Índia se considera um crime matar um pavão. Todavia, os antigos romanos incentivavam o uso de pavões como aves para a mesa. Na Europa medieval, um banquete entre os ricos não ficava completo sem um prato de suculento pavão. Pode ver, então, quão perplexo isso tem sido, visto pelos olhos do pavão.
   Agora, antes de concluir, há apenas um mal-entendido comum, com o que me preocupo. Essa expressão “orgulhoso como um pavão” tem espalhado a idéia de que o pavão simboliza o orgulho e a vanglória. Como acha que isso me faz sentir? E será realmente verdade? Acha que o nosso Criador todo-sábio implantaria tais qualidades indesejáveis em uma de suas criações ininteligentes? Mas, então, para avaliar plenamente as qualidades do pavão, é preciso ver as coisas pelos olhos dum pavão.

Fontes:
*Texto: Revista Despertai! de 8 de setembro de 1970 p. 20-23

*Imagens: Google


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